terça-feira, 21 de julho de 2009

65.

Resolvi sair de casa e ir até ao jardim da gulbenkian. Queria sentar-me num sítio com poucas pessoas, mas isso revelou-se impossível: parecia que todos queriam sair de casa num dia tão ameno de verão. Sentei-me, portanto, no topo do anfiteatro de pedra. Já que não podia estar sozinho, ao menos escolhia um sítio de onde poderia ver toda a gente. Quando tomei a decisão de ir até lá, não tinha isso em mente, mas já que ali estava, poderia aproveitar o momento para me afastar um pouco da minha vida e concentrar-me na dos outros.
A maioria das pessoas estavam acompanhadas. Um casal de namorados que, certamente, poderia dar sangue, parecia não ter nada para dizer. Talvez partilhassem tudo o que havia a partilhar no momento em que juntavam os lábios e outras trocas, bem mais físicas, se estabeleciam. Uma família com muitas crianças que festejava o aniversário de uma delas. Pareciam viver para correr atrás dos pombos, para comer os biscoitos que traziam e para mostrarem o quanto gostavam uns dos outros. Duas senhoras que pareciam falar sobre trabalho, sublinhando passagens de livros e apontando coisas importantíssimas nos seus blocos de notas.
Eu era um dos que estavam sozinhos. Estes entretiam-se a ler o jornal ou um livro, a escrever ou a observar o cenário à sua volta. Que pensariam eles? Chegara a altura das fotografias: a família feliz queria guardar, em algo mais confiável que a memória, os belos momentos daquele dia. Em que pensaria eu, enquanto os observava? Não pensava em nada, porque não podia. Não conseguia sequer imaginar como seriam as suas vidas, porque estava sempre a ser confrontado com a minha.
Vendo que o seu objectivo ali tinha sido cumprido, o casal de namorados foi-se embora, depois a família numerosa e em último lugar as duas senhoras. As pessoas acompanhadas iam e vinham, mas as pessoas que estavam sozinhas eram sempre as mesmas. Não teriam ninguém à sua espera? E eu, teria alguém à minha espera? Tudo o que via, me fazia pensar na minha vida e do que me valia isso? Para pensar nisso, mais valia ter ficado em casa. E foi para lá que voltei. Odeio jardins. Podemos estar moderadamente bem, mas acabamos por ficar deprimidos, porque há sempre alguém mais feliz que nós e que não tem vergonha em mostrá-lo.

3 comentários:

miopia disse...

é bom sair de casa. nem que seja sozinho e para nos limitarmos a observar os outros, como fizeste. sim, por vezes deparamo-nos com a felicidade mal escondida dos outros, estando nós arrasados (quase nos parece ofensivo, o que é ridículo). mas e se fosses tu a gozar um momento memorável, inibias-te? essas alturas são tão raras que há que agarrá-las. qualquer dia deixarás de pertencer ao grupo dos solitários e verás o mesmo contexto de outra forma. os jardins não serão tão odiosos e os dias amenos de verão tornar-se-ão mais suportáveis. e aí não escreverás sobre como teria sido melhor ficar recluso em casa a pensar na vida, mas sim como ficar dentro dela te faz perder tantas coisas que viveste e precisas de repetir.

(apareceu-me um pop-up com o teste do amor, vindo do teu blog. ahah)

Matilde disse...

ai pois é, também odeio pessoas felizes, odeio odeio! porque eu vou para lá pos jardinzinhos também assim muito solitária no mundo e ponho-me a olhar para as pessoas, tal como tu, e elas todas felizes e eu a pensar "ai deviam morrer todas. aliás, vão mesmo todas morrer. muahaha" quer dizer, não digo muahaha mas agora que penso deveria começar a dizer porque realmente dá mais ênfase ao meu pensamento demoníaco

Anónimo disse...

"Odeio jardins. Podemos estar moderadamente bem, mas acabamos por ficar deprimidos, porque há sempre alguém mais feliz que nós e que não tem vergonha em mostrá-lo."

Adorei este pedaço. Escreves muito bem. Parabéns! Que a ausência não te acompanhe por muito mais tempo, se bem que eu acho que até nela encontras inspiração. Surpreendente!